quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Pessoas boas atraem pessoas boas

O vento toca a pele como pequenas laminas afiadas e cortantes. A sensação de frio só faz aumentar com o zunido do ar gelado passando pelos ouvidos. Nas ruas, carros com seus vidros fechados protegem seus passageiros. Nos bares da cidade, bebidas quentes, aperitivos, pratos saborosos e muita gente bonita que se aquece entre conversas e muitos risos. Afinal, é sexta-feira e todos têm o direito de esquecer por alguns momentos que a vida é exigente demais. A noite é uma das mais frias do ano nesta enorme e linda cidade, São Paulo. Mas logo ali, numa das tantas avenidas da Zona Norte, sob a estreita marquise e sobre o granito gelado de uma agência bancária de um dos maiores grupos financeiros do mundo, uma pessoa não foi convidada, nem sequer avisada, a participar de todo esse calor. Ele tremia ao tentar - em vão - cobrir-se com uma velha toalha de banho, doação de um tocado morador da região. A fome estava sendo deixada de lado com a ajuda do álcool, que era o único companheiro disposto a uma boa conversa.

Entretanto, a cidade de São Paulo esconde - por entre seus arranha-céus - histórias de amor, carinho e solidariedade. Certa noite, fui à casa de um amigo na Avenida Braz Leme sem real necessidade, era algo que poderia ser feito outro dia. Quando retornei em direção ao meu carro presenciei uma cena comovente, dessas que marcam uma vida.
Um carro estava estacionado em cima da calçada com as portas abertas, em frente a tal agência bancária, e logo adiante uma mulher jovem e bonita falava com um andarilho. Aquele homem recebeu calor através de um cobertor, uma sopa quente e, principalmente, através de uma boa conversa. Resolvi falar com ela e percebi que ali ela não estava sozinha, pois havia duas amigas com ela, mas dentro do carro. Após um pouco de conversa, estavam todos rodeando aquele homem.

Na noite anterior, uma das mais geladas dos últimos anos, essa mulher de 44 anos de idade, sozinha, pára seu carro ao ver um morador de rua, com muito menos do que ela tem na vida. O homem passava muito frio e fome. Comovida, tomou uma atitude nobre e incomum. Voltou no mesmo instante à sua casa e providenciou um agasalho e comida.
Elayne não conseguiu dormir direito aquela noite de tanta preocupação com o morador de rua. Ela enxergou um homem frágil e sem proteção, a ponto de ele sentir vergonha de usar o que ganhou de presente na frente dela. Ele apenas continuava se protegendo do frio com uma toalha de banho velha e úmida.

As palavras de Venâncio Gomes, o morador de rua, foram de gratidão absoluta. Mas uma coisa que chamou muito a atenção. Ele não parava de repetir que era "negro". Ele pediu que eu me aproximasse e eu o fiz sem pestanejar. Ele ficou impressionado com o fato de eu não ter receio de chegar perto dele. Pensei que aquele homem, tão inteligente e sensível, deveria ter sofrido muito preconceito por uma coisa que nem existe: raça humana. Para mim ele não era preto, nem branco, nem vermelho, nem amarelo, ele era apenas uma pessoa que precisava conversar.
O que me comoveu particularmente na ação de Elayne não foi o fato de ela ter doado uma blusa, um cobertor ou mesmo comida, mas sim o fato de ela ter doado seu tempo, sua atenção e sua prosa, coisas raras no mundo globalizado e ágil de hoje. Ela deu muito mais que isso, proporcionou dignidade e calor humano aquele indivíduo excluído e ignorado pela sociedade.
Venâncio, que já teve emprego e família, hoje não tem casa nem bens pessoais, mas ele mantém intacta sua dignidade e cidadania. Dorme na rua, pois considera os albergueres proporcionados pela Prefeitura violentos e inseguros. Alegou não querer ter filhos para não jogá-los num mundo tão cruel e numa realidade tão degradante. Elayne, que vive bem e possui uma boa casa e família, perdeu - em um ano - o pai, a avó, o irmão e passou pela traumática experiência de atropelar um cadáver. Elayne enfrentou problemas que a fortaleceram e, ao invés de sentir pena de si própria, decidiu ajudar aqueles que necessitam.

São vidas distintas e experiências diferentes que podem unir os seres humanos tão frios e individualistas de hoje. Muitas pessoas se trancam nesses dias congelantes que estamos vivendo envoltas em seus problemas e não olham para o lado para perceber como é simples ajudar alguém que precisa apenas de calor humano. Dar roupa e comida não irá tirar aquele ou qualquer outro andarilho das ruas, mas irá, sem dúvida, aquecer seus corações tão embrutecidos pela vida.


Texto de Tatiana Cacalcanti com colaboração de Mario J.Silva. rascunho de Mario Stones

Um comentário:

RSTONE disse...

Isto é uma história de amor. E mesmo uma metrópole aperentemente fria e impessoal, como São Paulo, ainda é possível encontrar alguns resquícios do que restou do chamado "amor doado de coração". Isto me fez lembrar uma velha canção de Paulo Sérgio que diz assim: "Sem doutor e sem farmácia/Na cidade poluída/Só existe um bom remédio/Para a sua solidão(...)/Vem, que as avenidas/Se for bem grande o teu amor/Te levarão pro céu/Vem, que esta cidade/É uma fera, mas tem os olhos mansos/Por trás deste concreto/De toda esta ambição/Você vai encontrar/Um coração..." (in "Paulo Sérgio, LP "Nem Mesmo Cristo", 1973) - Abraços, RSTONE